The Walking Dead: A Queda do Governador – Leia o 1º capítulo do livro

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O 3º livro de The Walking Dead, A Queda do Governador – Parte 1, foi lançado em outubro de 2013 nos Estados Unidos e tem previsão de sair em janeiro de 2014 aqui no Brasil, pela editora Galera Record. Desta vez além do Governador e os outros habitantes de Woodbury, veremos também os sobreviventes da prisão. Rick, Glenn, Michonne e outros personagens estarão presentes nesta trama.

E enquanto o livro não é lançado, a editora disponibilizou o primeiro capítulo na íntegra para degustação. Leia a seguir e deixe suas impressões!

 

The Walking Dead “A Queda do Governador” – Parte 1

Um

Contorcendo-se de dor no chão, Bruce Allan Cooper arqueja, pisca e tenta recuperar o fôlego. Ele consegue ouvir os rosnados guturais, animalescos, de meia dúzia de Mordedores que vêm em sua direção, aproximando-se para se alimentar. Uma voz na mente de Bruce grita: Anda, seu idiota de merda! Sua bicha! O que está fazendo?!

Um enorme afro-americano com o físico de um ala da NBA, com a cabeça raspada em formato de míssil e um cavanhaque grisalho, ele rola pela terra áspera, evitando por pouco os dedos cinza em garras e a mandíbula estalando de uma Mordedora adulta com meio rosto.

Bruce percorre talvez 1,5 ou 2 metros até que uma pontada de dor explode pela lateral de seu corpo, irradiando fogo pelas costelas, tomando-o em uma agonia paralisante. Ele cai de costas, ainda segurando o machado de incêndio enferrujado. A cabeça do machado está coberta de sangue e cabelo humano, e da bile preta e viscosa que ficou conhecida entre os sobreviventes como excremento dos errantes.

Momentaneamente atordoado, os ouvidos zumbindo, um olho já se fechando pelo inchaço de um nariz quebrado, Bruce está vestido com o uniforme militar esfarrapado e coturnos da milícia oficiosa de Woodbury cobertos de lama. Ele consegue ver o céu da Geórgia acima — um dossel baixo de nuvens cinzentas imundas como água de lavar louça, inclemente e terrível para o mês de abril — e aquilo o provoca: Você não passa de um inseto aí embaixo, menino Brucey, uma larva na carcaça de uma terra moribunda, um parasita alimentando-se dos restos e ruínas da raça humana que desaparece.

De uma só vez, o panorama do céu sobre Bruce é ocultado por três rostos desconhecidos — planetas escuros que bloqueiam vagarosamente o paraíso —, cada um rosnando estúpida e ebriamente, cada par de olhos leitosos perpetuamente abertos e ansiosos. Um dos estranhos, um adulto obeso do sexo masculino, vestindo um jaleco hospitalar imundo, baba uma gosma preta que pinga na bochecha de Bruce.

— PORRAAAAAAAAA!

Bruce sai do estupor, encontrando uma reserva inesperada de força. Ele dispara com o machado. O lado pontiagudo arqueia para cima e empala o Mordedor gorducho no tecido mole abaixo da mandíbula. A metade inferior do rosto da coisa se solta e despenca, um corpo borrachudo de carne morta e cartilagem lustrosa que espirala uns 6 metros no ar antes de voltar para a terra e se esparramar.

Depois de rolar de novo e se levantar com dificuldade, Bruce executa um giro de 180 graus — relativamente gracioso para um homem grande agonizando de dor — e apunhala os músculos pútridos do pescoço de outra Mordedora que o ataca. A cabeça dela cai para um lado, agitando-se por um momento em fios de tecido desidratado antes de se soltar e quicar no chão.

A cabeça rola por alguns metros, deixando uma trilha de gosma preta, enquanto o corpo permanece de pé por um momento angustiante, contorcendo-se com braços irracionais esticados em um instinto cego terrível. Algo metálico se enrosca nos pés da coisa quando ela finalmente desaba no chão.

Bruce então ouve a coisa mais estranha que pode ser ouvida — abafada em seus ouvidos traumatizados — após a carnificina: címbalos se chocando. Pelo menos é o que parece aos ouvidos ainda zumbindo — um ruído latejante e metálico de algo se quebrando em sua mente — vir da vizinhança. Afastando-se com a arma na lateral do corpo, impulsionado pelo barulho, Bruce pisca e tenta se concentrar em outros Mordedores arrastando-se em sua direção. Há muitos deles para utilizar a picareta.

Bruce dá meia-volta para fugir, e, descuidado, corre diretamente na direção de outra silhueta que bloqueia o caminho.

— UOU!

A outra silhueta — um homem branco, de pescoço largo, compleição parecida com a de um hidrante, os cabelos loiros com um corte à escovinha antiquado no topo da cabeça — emite um grito de guerra e brande uma maça do tamanho da perna de um cavalo na direção de Bruce. O bastão com espinhos passa raspando pelo rosto de Bruce, a centímetros do nariz quebrado. Bruce instintivamente recua e tropeça nos próprios pés.

Ele desaba no chão em uma exibição esquisita que levanta uma nuvem de poeira e incita outra série de ruídos de címbalo vindos da névoa a uma curta distância. O machado sai voando. O homem de cabelos loiros se aproveita da confusão e ruge para Bruce com a maça erguida para a ação. Bruce resmunga e rola para longe do alcance dele no último minuto.

A cabeça da maça atinge o chão com força, cravando-se na terra a apenas centímetros do rosto de Bruce.

Bruce rola na direção da arma caída, que está jogada na terra vermelha a cerca de 3 metros. Ele fecha a mão em torno do cabo de madeira quando, de súbito, sem aviso, uma figura emerge da poeira bem à esquerda deBruce. Ele desvia da Mordedora, que rasteja em sua direção contraindo-se languidamente como um lagarto gigante. Gosma preta escorre da boca inerte da mulher — os dentes pequenos e afiados são visíveis —, e sua mandíbula estala com vigor reptiliano.

Então outra coisa acontece e leva Bruce de volta à realidade.

A corrente que mantém a mulher no lugar subitamente estala, e o monstro alcança o limite de seu grilhão. Bruce emite um arquejo instintivo de alívio, a coisa morta a apenas centímetros de distância, investindo inutilmente contra ele. A Mordedora ruge com uma frustração grosseira, a corrente segurando firme. Bruce sente vontade de arrancar as órbitas dos olhos da coisa com as próprias mãos, de morder o pescoço daquele pedaço inútil de carne pútrida de merda.

Mais uma vez, Bruce ouve aquele ruído esquisito de címbalo estalando, bem como a voz do outro homem, quase inaudível em meio ao barulho:

— Vamos lá, cara, levante… levante.

Bruce começa a se mover. Ele segura o machado e luta para ficar de pé. Mais ruídos de címbalo estalando… quando Bruce gira, ele brande o machado com força contra o outro homem.

A lâmina erra por pouco a garganta do Escovinha, rasgando a gola do casaco de gola rulê do homem e deixando uma fenda de 15 centímetros.

— Que tal? — murmura Bruce ao tomar fôlego, andando ao redor do homem. — Isso é divertido o suficiente para você?

— Esse é o espírito — murmura o homem robusto, cujo nome é Gabriel Harris, Gabe para os amigos, ao brandir o bastão novamente, a cabeça da arma coberta de pregos ciciando ao passar pelo rosto inchado de Bruce.

— É tudo o que tem? — murmura Bruce, afastando-se bem na hora, e, em seguida, circundando Gabe pelo outro lado.

Ele ataca com o machado. Gabe investe com o bastão, e, em torno dos dois combatentes, os monstros rugem e gorgolejam suas ululações aquosas, debatendo-se contra as correntes, famintos por carne humana, instigados a um frenesi de comida.

Conforme a névoa de poeira nos arredores do campo de batalha assenta, o que restou de uma arena de corrida de terra entra em foco.

Do tamanho de um campo de futebol americano, com as bordas externas fechadas por tela metálica, a Pista de Corrida dos Veteranos de Woodbury está cercada pelas relíquias de antigas áreas de pit-stop e passagens cavernosas. Atrás da tela metálica erguem-se bancos dobráveis que se inclinam para o alto até enormes e enferrujados postes de luz. No momento, os bancos estão cheios de grupos formados pelos animados residentes de Woodbury. Os ruídos estalados dos címbalos são, de fato, os aplausos incontroláveis e as vozes de deboche da multidão.

Lá no miasma de poeira que gira em torno do campo da arena, o gladiador conhecido como Gabe murmura, de modo que apenas seu adversário ouça:

— Você está lutando feito uma maldita de uma garota hoje, Brucey. — A piadinha é pontuada por uma investida circular com o bastão na direção das pernas do homem negro.

Bruce dá uma cambalhota no ar, executando uma manobra que causaria inveja a uma estrela do World Wrestling Entertainment. Gabe golpeia de novo, ao que o bastão se solta e acerta a cabeça de um jovem Mordedor com macacão coberto de graxa, talvez um antigo mecânico.

Os pregos se enterram no crânio cadavérico da coisa, fazendo fios grossos de fluido escuro jorrarem no ar antes que Gabe tenha a chance de puxar a maça e murmurar:

— O Governador vai ficar puto com sua atuação de merda.

— Ah, é? — Bruce contra-ataca com o cabo do machado, golpeando-o contra o plexo solar de Gabe e levando o homem robusto ao chão. O machado percorre um arco no ar e desce a apenas centímetros da bochecha de Gabe.

Gabe rola para longe e fica de pé, ainda murmurando.

— Não deveria ter comido aquela última porção de broa de milho ontem à noite.

Bruce investe em um novo golpe com o machado, a lâmina passando a centímetros do pescoço de Gabe.

— Olha quem fala, gorducho.

Gabe gira a maça várias vezes, empurrando Bruce de volta para os Mordedores acorrentados.

— Quantas vezes eu já te disse? O Governador quer que pareça real.

Bruce bloqueia a ferocidade dos golpes de maça com o cabo do machado.

— Você quebrou a porra do meu nariz, filho da puta.

— Pare de choramingar, otário.

Gabe golpeia mais e mais com a maça, até que os pregos se enterrem no cabo do machado. Gabe puxa a maça de volta e arranca o machado das mãos de Bruce. O machado voa pelos ares. A multidão vibra. Bruce se afasta às pressas. Gabe o segue. Bruce se interrompe e corre para o lado oposto, ao que Gabe se abaixa e, simultaneamente, golpeia as pernas do homem negro com a maça.

Os pregos se agarram à calça militar de Bruce, rasgando uma tira e lacerando a carne superficialmente. Bruce cambaleia e cai com força. Filetes de sangue espiralam através da luz pálida e empoeirada do dia, conforme Bruce rola.

Gabe recebe os aplausos frenéticos e descontrolados — as pessoas o fazem de maneira quase histérica — e se volta para a arquibancada, que está tomada pela multidão, a população pós-praga de Woodbury. Ele ergue a maça no estilo Coração valente. Os vivas crescem e aumentam. Gabe os incentiva. Ele se vira devagar com a maça acima da cabeça, uma expressão quase cômica de vitória masculina no rosto.

O lugar irrompe em um pandemônio… e nos bancos, em meio aos braços agitados e às vozes exultantes, apenas um espectador não parece comovido com o espetáculo.

 

Sentada na quinta fileira, bem longe, na ponta norte da arquibancada, Lilly Caul vira o rosto, enojada. Com uma echarpe de linho desbotada presa ao redor do pescoço para afastar o vento frio de abril, Lilly veste o jeans rasgado de costume, um casaco de brechó e um colar de contas de segunda mão. Enquanto balança a cabeça e emite um suspiro exasperado, o vento sopra fios de cabelo castanhos como caramelo ao redor do antes jovial rosto de Lilly, que agora exibe marcas do trauma — as rugas aninhadas ao redor dos olhos cor de água-marinha e dos cantos da boca —, tão profundas quanto as saliências de um couro curtido. Ela sequer está ciente de que resmunga.

— Malditos circos romanos…

— O que foi? — A mulher ao lado de Lilly ergue o rosto de um copo térmico de chá verde morno. — Você disse alguma coisa?

Lilly faz que não com a cabeça.

— Não.

— Você está bem?

— Bem… muito bem. — Lilly mantém o olhar distante enquanto o restante da multidão grita e urra e emite uivos de hienas. Ainda com trinta e poucos anos, Lilly Caul parece ao menos dez anos mais velha do que isso agora, com a sobrancelha perpetuamente franzida em consternação. — Se quer saber a verdade, não sei quanto mais desta merda aguento.

A outra mulher beberica o chá, pensativa. Coberta por um jaleco branco encardido sob a parca, com os cabelos presos em um rabo de cavalo, ela é a enfermeira da cidade — uma jovem determinada e de fala mansa chamada Alice —, que adquiriu bastante interesse na posição tênue de Lilly na hierarquia da cidade.

— Não é da minha conta — diz Alice, por fim, falando baixinho o suficiente para não ser ouvida por nenhum dos foliões próximos —, mas se fosse você, guardaria meus sentimentos para mim mesma.

Lilly olha para ela.

— Do que está falando?

— Pelo menos por enquanto.

— Não estou acompanhando seu raciocínio.

Alice parece vagamente desconfortável em conversar sobre aquilo em plena luz do dia, diante dos olhos de outros.

— Ele está nos observando, sabe.

— O quê?

— Agora mesmo, está vigiando.

— Você deve estar…

Lilly se interrompe. Ela percebe que Alice está falando da figura sombreada de pé no topo do arco de pedra, diretamente ao norte, a cerca de 30 metros de distância, sob o placar defeituoso. Escondido pelas sombras, a silhueta formada pelas luzes atrás de si, o homem está parado com as mãos nos quadris, observando a ação no campo com um brilho satisfeito nos olhos.

De altura e compleição medianas, vestido de preto, ele tem uma pistola de alto calibre presa ao quadril. À primeira vista, parece quase inofensivo, benigno, como o dono orgulhoso de uma terra ou um nobre medieval verificando sua propriedade. Mas mesmo àquela distância, Lilly consegue sentir o olhar viperino dele — afiado como o de uma cobra — varrendo cada canto da arquibancada. E, a cada poucos segundos, aquele olhar elétrico recai sobre o canto no qual Lilly e Alice agora estão sentadas, trêmulas sob o vento da primavera.

— É melhor se ele achar que tudo está bem — murmura Alice para o chá.

— Cruzes — resmunga Lilly, olhando para o chão de cimento coberto de lixo abaixo dos assentos da arquibancada.

Outra onda de vivas e aplausos se ergue ao redor dela quando os gladiadores se enfrentam mais uma vez no campo, Bruce descontrolando-se com o machado, Gabe encurralado por um grupo de Mordedores acorrentados. Lilly presta pouca atenção à cena.

— Sorria, Lilly.

— Sorria você… Não tenho estômago para isso. — Lilly ergue o rosto para a ação repulsiva no campo por um momento, a maça abrindo os crânios podres dos mortos-vivos. — Simplesmente não entendo. — Ela balança a cabeça e vira o rosto.

— Não entende o quê?

Lilly respira fundo e olha para Alice.

— E quanto a Stevens?

Alice dá de ombros. O Dr. Stevens tem sido o bote salva-vidas de Alice há quase um ano, mantendo-a sã, ensinando a ela o ofício de enfermeira, mostrando-a como costurar os gladiadores surrados com os suprimentos médicos cada vez mais escassos armazenados na rede de catacumbas sob a arena.

— O que tem ele?

— Não o vejo concordando com essa merda horrorosa. — Lilly esfrega o rosto. — O que o torna tão especial a ponto de não precisar ser bonzinho com o Governador? Principalmente depois do que aconteceu em janeiro.

— Lilly…

— Por favor, Alice. — Lilly olha para ela. — Admita. O bom médico jamais aparece para essas coisas e está constantemente resmungando para qualquer um sobre os sanguinários shows de horrores do Governador.

Alice umedece os lábios e apoia a mão no braço de Lilly em sinal de aviso.

— Me escute. Não se engane. O único motivo pelo qual o Dr. Stevens é tolerado são as habilidades médicas dele.

— E daí?

— E daí que ele não é exatamente uma peça bem-vinda no reinozinho do Governador.

— O que está dizendo, Alice?

A mulher mais nova respira fundo de novo, então abaixa mais ainda a voz:

— Só estou dizendo que ninguém está imune. Ninguém tem estabilidade profissional por aqui. — Ela segura o braço de Lilly com mais força ainda. — E se encontrarem outro médico, um que seja mais empenhado? Stevens poderia facilmente acabar lá dentro.

Lilly se afasta da enfermeira, fica de pé e dá uma olhada na ação repugnante no campo.

— Para mim já chega, não aguento mais. — Ela lança um olhar ao norte, para a silhueta no vão imerso em sombras. — Não estou nem aí se ele está vendo.

Lilly começa a se mover em direção da saída.

Alice a segura.

— Lilly, apenas prometa… que irá tomar cuidado. Está bem? Tente não causar problemas? Como um favor a mim?

Lilly lança um sorrisinho frio e enigmático para Alice.

— Sei o que estou fazendo, Alice.

Então, Lilly se vira, desce as escadas e some pela saída.

 

Faz mais de dois anos desde que os primeiros mortos acordaram e se fizeram conhecer pelos vivos. Nesse período, o mundo maior, fora do isolamento rural da Geórgia, gradualmente chegou ao fim com a lenta inevitabilidade das células metastáticas, os grupos de sobreviventes tateavam em busca de vantagens em condomínios de edifícios comerciais, em shoppings desertos e em comunidades abandonadas. Conforme a população de errantes se incubava e multiplicava e os perigos cresciam, alianças tribais entre humanos eram formadas com um propósito.

A cidadela de Woodbury, no estado da Geórgia, no condado de Meriwether, situado na parte oeste do estado, a cerca de 110 quilômetros ao sul de Atlanta, se tornou uma verdadeira anomalia no reino dos assentamentos de sobreviventes. Originalmente uma pequena cidade agrícola de cerca de mil pessoas, com a extensão de uma rua principal de seis quarteirões e travessias ferroviárias, a cidade tinha sido completamente fortificada e reforçada por um material improvisado de guerra.

Caminhões de carga leve modernizados com metralhadoras de calibre .50 foram enviesados nos cantos externos. Antigos vagões da ferrovia, envolvidos em arame farpado e posicionados para que bloqueassem os pontos de entrada. Ao longo do centro da cidade, muralhas cercam o distrito central de negócios — algumas das barricadas apenas recentemente terminadas — no qual pessoas vivem suas vidas esquecidas, agarrando-se às lembranças de eventos da igreja e churrascos ao ar livre.

Seguindo pela área central das muralhas, caminhando com determinação pelas pedras de cimento rachado da rua principal, Lilly Caul tenta ignorar o que sente sempre que vê os fantoches do Governador passeando diante das lojas, com AR-15 presas bem acima do peito. Não estão só mantendo os errantes fora… também nos mantêm dentro.

Lilly é persona non grata em Woodbury há meses, desde seu golpe malsucedido em janeiro. Era óbvio para Lilly, mesmo na época, que o Governador tinha saído do controle, que o regime violento dele estava transformando Woodbury em um carnaval da morte. Lilly conseguira recrutar alguns dos habitantes mais sãos da cidade — inclusive Stevens, Alice e Martinez, um dos braços direitos do Governador — para sequestrar o Governador certa noite e levá-lo em um passeio no país dos errantes, ensinar a ele um pouquinho de limite. O plano era “acidentalmente de propósito” fazer com que o Governador fosse devorado. Mas os errantes têm sempre de estragar o curso dos melhores planos, e, no meio da missão, um bando havia se formado do nada. A empreitada toda se reverteu em uma luta pela sobrevivência… e o Governador viveu para mandar mais um dia.

Estranhamente, em algum tipo de reviravolta darwiniana, a tentativa de assassinato só serviu para solidificar e fortalecer a base de poder do Governador. Aos residentes já sob seu feitiço, ele se tornou Alexandre, o Grande, retornando à Macedônia… Stonewall Jackson voltando para Richmond, ensanguentado, porém livre, um pit bull nervoso nascido para liderar. Ninguém parecia se importar que o líder fosse obviamente — pelo menos para Lilly — 100% sociopata. Estes são tempos cruéis, e tempos cruéis exigem liderança cruel. E para os conspiradores, o Governador tinha se tornado uma figura paterna violenta — dando “lições” e dosando suas punições mesquinhas com prazer.

Lilly se aproxima de uma fileira de edifícios de dois andares feitos de tijolinhos vermelhos, alinhados ao longo do distrito comercial. Antigos complexos de condomínios com decoração peculiar, agora eram prédios exibindo marcas de abrigos da praga. As cercas de madeira foram envoltas em arame farpado, os canteiros estéreis e pedregosos, e cheios de cartuchos de espingarda, as gavinhas de buganvília sobre as molduras das janelas estão mortas e marrons como fios desencapados.

Ao olhar para o alto, para todas as janelas cobertas por tábuas, Lilly pergunta-se novamente, pela milionésima vez, por que permanece naquela família horrível, desolada e disfuncional conhecida como Woodbury. A verdade é que ela fica porque não tem mais para onde ir. Ninguém tem mais para onde ir. A terra do lado de fora daquelas paredes está tomada por mortos errantes, as estradas secundárias entupidas de morte e destruição. Lilly fica porque tem medo, e o medo é o grande denominador comum nesse novo mundo. O medo leva as pessoas para dentro de si mesmas, desencadeia impulsos básicos e liberta o pior dos instintos ferais e do comportamento adormecido na alma humana.

Mas para Lilly Caul, a experiência de animal enjaulado atraiu outra coisa que se escondera profundamente dentro dela pela vida toda, algo que a havia assombrado nos sonhos e estivera à espreita em seu âmago como um gene recessivo: a solidão.

Filha única, criada na cidade de classe média de Marietta, Lilly costumava ficar sozinha: brincava sozinha, sentava-se sozinha no fundo do refeitório ou do ônibus escolar… sempre sozinha. No ensino médio, a inteligência afiada, a teimosia e o humor incisivo a distanciavam do cenário social das animadoras de torcida. Cresceu sozinha, e o peso latente dessa solidão a perseguiu no mundo pós-praga. Lilly perdeu tudo que já significou alguma coisa para ela — o pai; o namorado, Josh; a amiga, Megan.

Lilly perdeu tudo.

Seu apartamento fica na ponta leste da rua principal, um dos prédios de tijolo vermelho mais detonado do complexo. Ervas daninhas mortas se agarram à parede oeste como mofo, as janelas cobertas pelas veias pretas e crispadas das gavinhas. Do telhado brotam antenas tortas e antigas parabólicas, que muito provavelmente jamais receberão sinal. Conforme Lilly se aproxima, o teto baixo das nuvens se abre e o sol do meio da tarde, pálido e frio como uma lâmpada fluorescente, irrompe sobre ela, fazendo com que o suor brote na nuca.

Ela chega à porta externa e busca as chaves. Mas para subitamente, algo chamando sua atenção pelo canto do olho. Lilly se vira e vê uma figura estropiada jogada no chão do outro lado da rua, um homem encostado na achada de uma loja. A visão dele causa uma pontada de tristeza no estômago de Lilly.

Ela guarda as chaves e atravessa a rua. Quanto mais se aproxima, mais claramente ouve a respiração difícil dele — obstruída pelo catarro e pela depressão — e a voz baixa e chiada do homem murmura exalações incompreensíveis num estupor alcoólico.

Bob Stookey, um dos últimos amigos verdadeiros de Lilly, está deitado, enroscado em posição fetal, estremecendo, desmaiado dentro do casaco verde-ervilha da marinha, fedido e puído, apoiado na porta de uma loja de ferragens destruída. A janela acima de Bob exibe o anúncio irônico, desbotado pelo sol, com letras alegres multicoloridas: LIQUIDAÇÃO QUEIMA TOTAL DE PRIMAVERA. A dor gravada no rosto bastante enrugado e envelhecido do médico do exército — que está pressionado contra a calçada feito lixo orgânico — parte o coração de Lilly.

O homem entrou em decadência desde os eventos do último inverno, e pode ser que fosse agora o único outro residente de Woodbury mais perdido do que Lilly Caul.

— Pobrezinho — diz Lilly, em voz baixa, ao esticar a mão na direção de um cobertor de lã em frangalhos enroscado aos pés de Bob.

O fedor de cecê, fumaça de cigarro e uísque barato é soprado até ela. Lilly puxa o cobertor sobre Bob, uma garrafa de bebida vazia rola para fora do tecido e emite um estalo contra a saliência ao lado da porta.

Bob solta um gorgolejo.

— … preciso contar a ela…

Lilly se ajoelha ao lado do amigo, acariciando o ombro dele e imaginando se deveria limpar Bob, tirá-lo da rua. Também imagina se o “ela” sobre quem Bob balbucia é Megan. Ele gostava da garota — pobre homem —, e o suicídio de Megan o destruiu. Agora, Lilly puxa o cobertor até o pescoço empapado de Bob e dá tapinhas carinhosos no amigo.

— Está tudo bem, Bob… ela… ela está em um lugar melhor…

— … preciso contar…

Por um breve instante, Lilly se afasta ao ver os olhos tremeluzentes de Bob, que revelam a parte branca e injetada abaixo. Será que ele se transformou? O coração de Lilly dispara.

— Bob? É Lilly. Você está tendo um pesadelo.

Lilly engole o medo ao perceber que o amigo ainda vive — se é que aquilo pode ser chamado de vivo — e que está simplesmente se contorcendo durante um sonho febril e ébrio, provavelmente revivendo a reprise interminável de ter esbarrado em Megan Lafferty pendurada na ponta de uma corda, que por sua vez fora jogada pela varanda quebrada de um apartamento.

— Bob…?

Os olhos dele estremecem e se abrem, apenas por um instante, sem foco, mas acesos com angústia e dor.

— Preciso… contar a ela… o que ele disse — diz o homem num chiado.

— É Lilly, Bob — diz Lilly, baixinho, acariciando o braço de Bob. — Está tudo bem. Sou eu.

Então, o velho médico encontra o olhar de Lilly e diz outra coisa, em seu chiado mucoso e gaguejante, que faz a espinha de Lilly gelar. Dessa vez, Lilly ouve com clareza e percebe que o “ela” não é Megan.

O “ela” é Lilly.

E a coisa que Bob Stookey precisa lhe contar assombrará Lilly enquanto ela viver.

 

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